O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Desarquivando o Brasil CXXXIX: O combate policial às publicações anarquistas, ontem e hoje

Livros anarquistas voltaram a ser objeto de apreensão policial e de prova criminal. Em 2013, eles já tinham sido enquadrados na categoria de "material perigoso". Naquele ano, tal literatura foi apreendida na Federação Anarquista Gaúcha, em razão dos protestos e manifestações que ocorriam no país, durante a gestão do governador petista Tarso Genro.
Lembremos que a Polícia Civil fluminense chegou a considerar, em 2014, Bakunin suspeito de participar de atos violentos em protestos.
Agora, que a polícia gaúcha chega a resultados semelhantes por meio de livros e de "coquetéis molotov" pacifistas feitos de garrafas pet, faço mais uma nota sobre apreensão de publicações durante a ditadura militar. Como há milhares de documentos com esse objeto, escolho este por estar mais próximo de nosso tempo, por vir do último governo daquela época.

O documento, uma informação confidencial do Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (DEOPS/SP), integra o acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Três pessoas haviam sido presas em 19 de julho de 1980 perto do Parque do Anhembi, no Município de São Paulo, com "publicações suspeitas".
Uma delas era o célebre O direito à preguiça, de Paul Lafargue, que, diferentemente da informação dada pela inteligência policial, era genro de Marx, e não de Lênin... Trata-se de publicação marxista.
Na mesma informação, a prisão, em Jundiaí pela posse de periódico anarquista, O inimigo do rei. O exemplar era o número 11 (ano 4), com referência geográfica a "Salvador, Rio, São Paulo e Porto Alegre".
Por sinal, nesse número, de maio a agosto de 1980, foi publicada uma matéria com Zé Celso.
O jornal era publicado pela Editora e Livraria A, de Salvador, que também havia lançado A Plebe, apreendida em Mogi das Cruzes.
No início do século passado, foi fundado por Fábio Lopes dos Santos Luz e Edgard Leuenroth em 1917 o conhecido periódico anarquista com esse título. Foi publicado até 1951.

Não tenho cópia da publicação apreendida, porém o auto de exibição e apreensão feito pelo DEOPS/SP informa que se trata do número 15 da "nova fase" de A Plebe, que havia voltado por meio da editora de Salvador.
Estavam os agentes da repressão política preocupados com as explosões ideológicas que esse material poderia provocar? Ou seja, no léxico autoritário da doutrina de segurança nacional, reprimiam a "guerra psicológica adversa"? O irônico é que, nessa mesma época, bombas explodiam por todo o país. Não eram, no entanto, os anarquistas que as jogavam. Tampouco eram reprimidas.
O governo de Figueiredo veria o Riocentro, o atentado à OAB-RJ, ataques a defensores de direitos humanos (como Dalmo Dallari, que felizmente sobreviveu) e, entre outros atos terroristas, os inúmeros ataques a bancas de jornais que vendiam veículos da imprensa de esquerda.

Por algum motivo que me escapa, nenhum desses diversos casos foi solucionado pela polícia. A supressão das liberdades de imprensa e de expressão, que não encontrava mais o instrumento normativo dos atos institucionais, continuava a ser realizada por meio do terror.
Como no Riocentro, via-se que não se podia fazer diferença, ao menos durante a ditadura, entre grupos paramilitares e as Forças Armadas, entre ordem e terror, entre Estado e organização criminosa.
Os anarquistas, evidentemente, dirão que tais diferenças não existem, e que o Estado é sempre criminoso.
Ao lado, em outro documento de 1980 do DEOPS/SP que pode ser encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, temos o nome de alguns dos jornais que eram vítimas dessa ação: Versus, O Repórter, Movimento, Hora do Povo, O Trabalho, Voz da Unidade. Jornais foram bombardeados não só nos seus pontos de compra, mas também em suas sedes durante o governo Figueiredo, como A Hora do Povo.
Esses jornais não eram anarquistas, porém os mecanismos contra estes serviam contra toda a esquerda, que deveria relembrar sempre tais acontecimentos.
Neste momento, em 2017, que juristas defendem sub-repticiamente em rede nacional o afastamento do princípio da tipicidade penal para que associações anarquistas possam ser enquadradas na lei antiterrorismo (o anarquismo, bem ao contrário do nazismo e do fascismo, não é movido "razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião", previstas no artigo 2o. da Lei), em afronta direta às garantias fundamentais internacionais e constitucionais, temos que continuar a estar atentos às liberdades políticas, ameaçadas especialmente em regimes não democráticos, como voltou a ser o nosso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário