O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Maria Callas e o método das iluminações

Maria Callas morreu em 1977, de um enfarte fulminante em sua casa, em Paris. Ainda não tinha completado 54 anos. Continua a ser, segundo fontes que li, a cantora lírica que mais vende discos no mundo, o que é significativo em um campo artístico que exige tanto dos intérpretes. Creio que não deva ter paralelo na música popular.
Eu a ouvi pela primeira vez em uma transmissão de La Gioconda, ópera de Ponchielli, na Rádio MEC. Eram os anos 1980.  Ouvi apenas o final da ópera e fui surpreendido pelo desespero (eu não sabia nada da história, peguei a transmissão no fim) e pelo mergulho daquela voz na região grave, pouco usual para um soprano. Era isto. E incomparável.
Ela estreou na Itália em 1947 com esse papel. Não o cantou muitas vezes ao vivo, mas, depois da gravação de 1952 para a Cetra,  regravou-o para a EMI em 1959. A hiatória se passa em Veneza. Na ária "Suicidio", a protagonista cogita matar-se diante dos problemas que enfrenta, entre os quais o assédio sexual de um denunciante da Inquisição, o desaparecimento recente de sua mãe (que é cega), e o fato de ter salvado para o homem que ela, Gioconda, ama, a mulher que ele, Enzo, ama, e que o marido tentou matar ao descobrir o adultério.  O libreto é de Arrigo Boito,  mas a história vem de Hugo.
Depois de cogitar o suicídio, pensa no que fazer com Laura, a rival que ela salvou, embora tivesse planejado matá-la; só não o fez porque descobriu que Laura salvara sua mãe quando o assediador resolveu incitar um linchamento popular contra ela, acusando-a de bruxa.
Gioconda debate-se entre sentimentos opostos, ouve os gondoleiros dizer que há cadáveres e, em meio à "tempestade" que sente, pede, a partir dos 4 minutos, "Enzo, Enzo, pietà di me!" O tenor chega e exclama "Gioconda!".
A veemência com que Callas canta essa parte, com o recurso de sua impressionante voz de peito e o agudo estável ainda em 1959, se ainda não tivesse convencido o público sobre os sentimentos de Gioconda, a vulnerabilidade com que ela indaga, depois de 4'30'', "Enzo, sei tu?" desarmaria os mais céticos. O trabalho desta intérprete é povoado desses detalhes, iluminações que dão vida e complexidade para os personagens que encarnou.
Nessa atenção para os detalhes revela-se o gênio de Callas, que faz com que achemos algumas outras cantoras chatas ou meio burras em comparação, mesmo se têm vozes esplêndidas, e que sustenta o interesse pelo trabalho dela mesmo durante o declínio vocal.
Essa é uma ópera do verismo, um estilo do realismo na música, e me referi a duas gravações em estúdio. No entanto, pode-se legitimamente afirmar que o maior legado dessa artista concentra-se nas óperas do chamado bel canto em gravações ao vivo.
Um dos papéis em que Callas foi mais revolucionária foi o de Lucia di Lammermoor na ópera homônima de Donizetti. Uma jovem que namora em segredo o remanescente da família rival é enganada pelo próprio irmão para casar com outro, seu amado aparece inesperadamente na cerimônia, ocorre um escândalo, ela enlouquece na noite de núpcias e assassina o marido. Vai para o salão onde ainda ocorre a festa de casamento e imagina estar se casando com o outro...
Trata-se de uma cena de loucura, um longo solo que outras cantoras tratavam como pretexto para vocalises na região aguda e passeios desnorteados pelo palco. Callas quase não se deslocava nesse momento, segundo os relatos (há pouquíssimos e, com uma exceção, em geral muito curtos vídeos que a mostrem em ação no palco de ópera). Ela forçava o público a concentrar-se nela pela força da unidade que atingia entre música e drama. Os dois elementos, para ela, não se dissociavam, o que explica que seja sinônimo da ópera para tantos.
Callas ressaltava a fragilidade e a perturbação de Lucia desde a entrada, tornando verossímil o surto posterior. Quero aqui destacar um só momento da interpretação, e que só a ouvi fazer na apresentação em Berlim, 1955, regida por Karajan. A personagem imagina, em seu delírio, que está a entrar na igreja para casar-se com Edgardo.  Exclama: "La gioia che si sente e non si dice" (a alegria que se sente e não se diz, a partir dos 6 minutos e 6 segundos do vídeo). Ela canta "La gioia" forte, executa a escala descendente e "si sente" é cantado como se fosse um eco, quase um fantasma, como o fantasma da fonte que a atormenta desde a ária do primeiro ato.
O canto entra no terreno do indizível, talvez preparando para a cadência mais adiante, na vogal "ah", que Callas conseguia integrar ao que veio antes, preparando no discurso a irrupção do inarticulado. Por quê? Essa alegria não se diz, canta logo depois, com um timbre diferente dos que tinha criado até então, quase como se fosse uma menina. Além da desorientação sugerida pelas mudanças de abordagem vocal em espaço tão curto, o caráter reprimido de Lucia, cujo desejo foi calado pela família, é exposto e absolve esta cena de loucura da acusação de mero clichê da ópera romântica italiana.
Uma voz muito diferente da que Callas adotava para Lucia era a que ela forjava para cantar Medea, na ópera de Cherubini, que ela cantava com os recitativos de Lachner e em tradução para o italiano. O original é na língua francesa e tem diálogos falados. A gravação de estúdio, com o maestro Serafin, um dos descobridores de Callas, apresenta cortes demais. Na última gravação ao vivo dela disponível, na regência ponderada de Schippers, que não logrou evitar alguns acidentes orquestrais, há uma passagem muito impressionante, sobre a qual fiquei curioso depois de ler uma entrevista do baixo Nicolai Ghiaurov poucos anos antes de morrer. Indagado sobre Callas, respondeu que nunca esqueceria como ela lhe dizia "un dì" na famosa cena em que Medea suplica mais um dia para Creonte antes de partir para o exílio. Sabemos que a feiticeira conseguiria executar toda sua vingança nesse prazo, mas ela consegue convencer o rei.
Em 1961, a voz de Callas, já na fase Onassis  (que não tinha piano no navio, não gostava de ouvir os exercícios vocais e, segundo Zefirelli, por isso Callas parou de praticar, o que é suicídio para  um cantor lírico), já tinha perdido extensão e estabilidade no agudo, mas continuava suprema no papel (basta comparar com quem veio depois, como Rysanek, Gencer, Caballé, Antonacci...) e ainda tinha descoberto inflexões novas; a cada vez, ela pede por "un dì" com uma inflexão diferente, como se experimentasse qual daquelas maneiras iria finalmente convencer Creonte; ouçam a partir dos 29 minutos, essa parte da súplica ocorre aos 29'40''.
No fim da cena, ela canta sem problemas o si bemol agudo.
A EMI não quis gravar muitos dos papéis que ela interpretou ao vivo, alguns dos quais ela resgatou, esquecidos em razão da falta de intérpretes capazes de encarná-los. Medea foi um deles, a Armida de Rossini também. Des,  temos uma gravação ao vivo da ópera quase completa em um som quase atroz, como parecia ser a regra nos teatros italianos nessa época, e da ária "D'amor al dolce impero", em 1954, para o rádio.
A história, parte de "Jerusalém libertada", é conhecidíssima e gerou várias obras líricas (como as de Gluck e Lully). A obra de Rossini concentra-se no encantamento que a feiticeira lançou sobre o cruzado Rinaldo e termina depois que ele consegue liberar-se do feitiço. Naquela ária, especialmente na apresentação de 1952 em Florença, na regência de Serafin, a multidão de ornamentos e a extensão de duas oitavas e meia (Callas interpola no final da ária um ré sobreagudo de dez quilômetros; antes, havia chegado ao mi, e terminaria a ópera com um mi bemol fortíssimo) não são gratuitas, e sim expressam os poderes mágicos da personagem.
É de se indagar se mesmo a Colbran, criadora do papel e célebre virtuose, conseguiu cantar nesse nível.
Se Callas podia ser tão incomparável nesses papéis de personagens tão distantes do cotidiano, ela podia ser igualmente convincente em personagens que não têm nada de incomum. Posso até mesmo lembrar aqui um papel que ela jamais cantou inteiro: gravou apenas uma ária e a cantou em concerto: a Charlotte da ópera Werther, de Massenet, e a cena em que ela está com as cartas do Werther, que a ama. Trata-se da conhecida história de Goethe. Sabemos que seu compromisso de noivado e casamento não seria rompido. Porém, nesta cena, sozinha, fica bem claro que ela o ama. E, ao vivo em Paris, em 1963, sob a regência de Prêtre, Callas empresta às lágrimas ("larmes") uma voz extremamente comovida, sem quebrar a linha de canto com soluços, que é o que faria uma cantora menos sutil. A partir de 5'05" , depois do "não me acuse, chore por mim", temos essa passagem.
Dito isso, Callas podia ser muito engraçada, como em O Turco na Itália, de Rossini, que cantou em Roma e em Milão e, felizmente, gravou. Apesar dos cortes, ela faz parecer Cecília Bartoli uma intérprete comedida e tímida em comparação.
Ela era uma artista de contrastes, que ela encontrava dentro dos personagens, onde descobria complexidades que outras cantoras ignoravam, e também na justaposição de repertório com exigências vocais muito diferentes, como cantar ao mesmo tempo Medea e Lucia, o que não é uma receita de longevidade vocal. Na estreia dela em Paris, em 1958, ano em que foi expulsa da Itália (a imprensa italiana conseguiu destruir sua carreira lá inventando que ela quis insultar o presidente quando deixou uma apresentação de Norma por estar doente) e do Metropolitan Opera House  (outra história absurda), ela teve que lutar com a péssima performance do coro e com a afinidade zero do maestro com o bel canto. A voz está fria no primeiro número, a entrada da Norma (na qual se percebe o problema de apoio que iria minar seu canto), porém ela vai ficando cada vez mais segura.
Gostaria de destacar dois momentos contrastantes, tanto em termos vocais quanto teatrais. No final da primeira parte do concerto, Callas livra-se do coro e canta a ária de Rosina da ópera "O Barbeiro de Sevilha", de Rossini. Callas a cantava com os agudos da versão de soprano. Quando repete "io sono docile" (aos 4'56'') ela muda o timbre, deixa-o ainda mais ligeiro, quase como se estivesse rindo de nós; afinal, não é bem assim, é depois do "mi fo guidarrrma", ela anuncia que pode se tornar uma víbora para conseguir o que deseja.
A segunda parte é o segundo ato da Tosca, de Puccini. Imagino que seja bem incomum uma cantora interpretar a música da Tosca e a da Rosina na mesma noite. Sérgio Brito, na introdução à edição brasileira do livro de John Ardoin destaca o que Callas inventa no fim. Tosca, a cantora, acabou de assassinar e terminar o rito fúnebre improvisado do chefe de polícia romano,  que queria estuprá-lá em troca da vida do namorado dela, um revolucionário em tempos napoleônicos.  Tosca tem ainda uma frase a dizer, "Diante dele, tremia toda Roma". Na gravação em estúdio de 1953, ela canta a frase repetinfo o dó grave. Na última, que foi lançada em 1965, e que seria trilha sonora do filme que Karajan impediu, comprando os direitos de filmagem da ópera, ela declama a passagem com desprezo pelo policial corrupto, torturador e assassino.
Em Paris, ela debocha dele, aos 11'30''. É muito divertido.
Poderia citar mais mil exemplos das iluminações de Callas, que partem dessa unidade entre música e drama que é a essência da ópera. Como ela foi uma artista original que iniciou o resgate de um repertório negligenciado, os críticos e os outros intérpretes que se viam ultrapassados pela simples existência dela, foi muito combatida.  Quando foi lançada sua primeira gravação de Norma, de Belliní, a revista inglesa Opera deu uma página dando notícia do disco, mencionando todos os cantores menos a protagonista. Quando iria estrear no Metropolitan, a Time deu-lhe capa, mas a matéria a atacava tanto pessoalmente quanto como artista.
Já em 1958, ela cogitava publicamente deixar a ópera, depois das ameaças de morte que recebeu na Itália. Mas ela venceu: a ópera foi transformada pela passagem de Callas, seu gênio e seu profissionalismo (ela era uma diva que já chegava aos ensaios sabendo toda a música, e que podia chegar mais cedo para assistir ao ensaio do coro e conhecer melhor a concepção do espetáculo).
Callas era uma intérprete que nem mesmo precisava cantar. Alberto Pimenta, em texto de O terno feminino, destaca essa força de incorporar a música mesmo antes de abrir a boca. Vejam o que ela faz na introdução à "Tu che le vanità", da ópera Don Carlo, de Verdi. Depois, ela logra estabelecer o contraste entre o "mundo" e o "repouso profundo" da sepultura, que ela ressalta com a voz de peito, com o som mais etéreo que produz para "céu".
Callas começou a cantar muito cedo e estreou profissionalmente com a Tosca, que ela cantaria até o final, porém é um papel que hoje ninguém sensato daria a alguém com menos de 20 anos. Pouco depois, ainda na Grécia, cantaria Leonore da ópera Fidelio, de Beethoven, e ainda interpretaria, já na Itália, heroínas dramáticas de Wagner (mas em italiano), Isolda, Brünnhilde e Kundry, bem como Turandot... Papéis que ela deixaria para se concentrar no bel canto
Há quem a critique pela "carreira curta". Levando em conta o quão cedo começou, a carga de trabalho que acumulou (e que ela multiplicou cantando a plena voz nos ensaios), as complicações que atravessou, inclusive de saúde, Callas até cantou bastante tempo, embora tenha deixado os palcos antes dos 42 anos. Ademais, quando ela parou, suas companheiras de geração, deve-se notar, já estavam em decadência, como Victoria de los Ángeles, Renata Tebaldi e Elisabeth Schwarzkopf.
De certa forma, a carreira de Callas foi a mais longa de sua geração, pois seu impacto continua a sentir-se hoje: no repertório que estava na obscuridade e cujas possibilidades ela iluminou (hoje até o Metropolitan que, sob a triste direção de Bing, se recusou a montar Anna Bolena com Callas, produz essa ópera e outras do mesmo estilo), nas exigências artísticas que fez a si mesma, aos colegas e ao público  (uma ética da performance) e nas gravações que deixou.
Neste ano, em outra vingança póstuma, a gravadora que ficou com o espólio da EMI lançou uma caixa com algumas das interpretações ao vivo da cantora, e parte delas são de óperas que a gravadora recusou porque não foram consideradas comerciais o suficiente... Embora estejam sendo comercializadas até hoje,  primeiro como discos piratas.
Ela também foi acusada de ter uma voz "feia"; deveríamos perguntar qual das vozes de Callas não tem beleza, já que há tantas. Quanto a mim, acho que há poucos sons mais belos do que ela cantando "Soffriva nel pianto", da Lucia, em Berlim. Meneghini, o marido de quem se separou para viver com Onassis, escreveu que ninguém questionava a beleza de sua voz e que essa acusação apareceu apenas depois que começaram a compará-la com Renata Tebaldi, soprano que serviu como referência para os ataques movidos pelos reacionários contra Callas. Tebaldi, segundo estes, cantava como um anjo, e não era estridente como a rival.
Claro que o angelismo era facilitado pelo fato de ela transpor para baixo sistematicamente certas passagens (nem em estúdio ela foi capaz de enfrentar "Sempre libera", de La Traviata, na tonalidade certa) cantar uma oitava abaixo as notas difíceis, além de estar algumas vezes baixa nas notas agudas, defeitos que ouvimos nas gravações ao vivo. Enfim, a comparação entre ambas não fazia realmente sentido, até porque não costumavam cantar o mesmo repertório.
Esta nota se alonga, emora eu não tenha mencionado trechos da Norma, da Traviata e de outros papéis associados à cantora. Apontar as iluminações que ela criava nessas óperas é um trabalho para toda uma vida, e por isso ela é um caso raríssimo de cantor de quem se edita praticamente todo suspiro. É uma pena que, em vídeo, praticamente só tenhamos documentos do fim de seu auge e da decadência vocal.
Término com dois pontos. O primeiro é a justificativa de um leigo como eu escrever isto: vi coisas meio absurdas e informações erradas nestes 40 anos de morte, como o de que nunca teria cantado Mozart no palco (interpretou um deles, a Konstanze de O rapto do Serralho em italiano no Scala), em um estranho programa de rádio de São Paulo.
O segundo,  uma última iluminação, desta vez da Sonnambula, de Belliní. A pobre sonâmbula, Amina, lamenta, andando adormecida, a perda do amor que só um dia durou. O pranto poderia reviver as flores,  mas não o amor. Esses clichês poéticos ttansformam-se na mais delicada desolação na voz de Callas, especialmente ao vivo em Colônia, em 1957, com o maestro Antonino Votto. A partir de 10'50'', ouve-se a frase "il pianto mio ah non, non, non può". Em "pianto", ela realiza um diminuem do na nota prolongada e emprega o mesmo efeito em "può"; os diminuendi e o timbre absolutamente melancólico que ela encontrou para "mio" deixam uma impressão de tremenda fragilidade e de colapso iminente. Ninguém mais encontra essa profundidade de sentimento em Amina que, sem isso, é mera oportunidade de exibição vocal.
Depois, ela é acordada, seu noivo vê que a julgou mal e a aceita novamente e o personagem canta o recontro da felicidade. Entre as duas estrofes de "Ah! Non giunge uman pensiero", Callas emite (depois dos 16 minutos) um mi bemol sobreagudo, faz um diminuendo nessa nota, desce numa escala cromática, volta a subir e para, enfim respira e ataca um fá agudo forte. Na estrofe final, os ornamentos não interrompem a melodia, ao contrário do que cantoras menos musicais fazem.
Em momentos como esses, Callas dava a impressão não só de que podia cantar tudo, como o de que podia expressar todos os sentimentos, da tristeza mais profunda à alegria mais eufórica, e que poderia enriquecer o mundo com sentimentos novos, que ainda não tinham sido alcançados por voz alguma.

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