O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 1 de maio de 2011

Terra sem lei III e Desarquivando o Brasil VII: Belo Monte e as vítimas do Estado

A eventual usina hidrelétrica Belo Monte, que devastaria (devastará, se realizada) uma proporção amazônica da Floresta Amazônica e fatalmente afetaria as comunidades indígenas, foi objeto, no mês passado, de decisão cautelar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que suspendeu o processo de licenciamento ambiental do empreendimento.
Em represália, o Estado brasileiro, num jogo sujo diplomático que remonta às táticas estadunidenses contra a ONU, decidiu não mais indicar a candidatura de
Vannuchi à Comissão em 2012. Haverá rompimento com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos? É possível que não, mas ele não interessaria apenas às empreiteiras envolvidas no caso, mas também aos setores militares, diplomáticos e empresariais que não desejam abrir os arquivos da ditadura - o que foi objeto de recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A presidenta Dilma Rousseff, neste caso, parece repetir argumentos (não sabemos o teor da resposta oficial à OEA - talvez isso ocorra apenas quando os arquivos do governo Dilma forem abertos...) que o presidente Médici, de sangrenta memória, empregou ao não autorizar a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso da tortura e assassinato de Olavo Hanssen em 1970, obra da Operação Bandeirante e do DOPS/SP.
Hanssen entregava panfletos a favor de Cuba, do Vietnã e das causas trabalhistas em uma festa sindical e autorizada de primeiro de maio (o dia de hoje) em 1970. Seu assassinato pelas forças da repressão gerou uma condenação pela OEA, que foi ignorada pelo Estado brasileiro. Afinal, era uma terra do arbítrio, e não da lei.
Era, mas continua a ser? Certamente. E que argumento era o de Médici e continua a estar presente? O de que fiscalização internacional no campo dos direitos humanos seria uma afronta à soberania. Isto é, as razões de Estado (ou do capital, já que não há diferença alguma no caso) são superiores às da humanidade ou, se adotarmos um ponto de vista não antropocêntrico, às da natureza.
Essa forma de ver o Estado como um absoluto (de forma que, na filosofia do direito de Hegel, não há espaço para o direito internacional) seria um hegelianismo de araque? Essa referência filosófica animaria as declarações e ações de Nelson Jobim, Mendes Júnior, OAS e Queiroz, Dilma Rousseff, PC do B e congêneres?
Acontece algo de semelhante na Argentina, sob o governo também alegadamente de esquerda da presidenta Kirchner. Leiam o que o grande constitucionalista Roberto Gargarella conta sobre a criminalização dos índios:

El CELS reclama que el Estado Nacional convoque a una mesa de diálogo para la comunidad qom “La Primavera”

La falta de respuestas del poder político y la amenaza de un desalojo violento por parte de la policía federal motivaron el levantamiento de la protesta llevada adelante por miembros de la comunidad qom “La Primavera” en la avenida 9 de Julio. Ante estos hechos el Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) reclama que el Estado Nacional convoque de manera urgente a una mesa de diálogo con el gobierno de Formosa y los indígenas, tal como lo exigió la semana pasada la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH).
[...]

O CELS, como se sabe, é a organização de direitos humanos que primeiro obteve uma decisão judicial, no caso Poblete, que declarou a inconstitucionalidade das leis de anistia na Argentina. Depois de amplo debate, o Legislativo argentino anulou essas leis e a Suprema Corte argentina também acabou por declarar sua inconstitucionalidade.

Lá, também protesta-se contra a falta de diálogo com as comunidades indígenas, que permanece após a redemocratização. Nessa recusa, vemos que os índios, à diferença dos desaparecidos políticos, cujos nomes ainda podem ser repetidos por nós (na foto no início desta nota, vê-se uma das pilastras defronte à OAB-RJ cobertas de nomes de vítimas da ditadura militar), são desaparecidos em vida. O Estado não os representa, pois sua organização não é estatal. Sua forma de vinculação à terra não interessa às autoridades, visto que não segue os estatutos do território. Elas querem os índios como anônimos e desaparecidos.
A placa acima, que a escritora brasileira Veronica Stigger expôs no fim de 2010 nos tapumes do SESC 24 de Maio em São Paulo. A exposição era feita com frases alheias ouvidas nas ruas, e essa bem retrata o problema: não apenas a suposta defesa dos índios dá-se com uma frase inegavelmente racista, mas se ignora que eles continuam a existir - um genocídio que foi completado no plano do imaginário.
Belo Monte, se realizada, não será imaginária. A incompatibilidade do modelo de desenvolvimento nela incorporado (muito semelhante ao do Brasil da ditadura militar) com a democracia parece-me clara.
Termino esta nota com Eduardo Viveiros de Castro, o grande antropólogo brasileiro:

Bem, para mim, fugir do Brasil era um método de se chegar ao Brasil pelo outro lado. Circum-navegação. É importante que o Brasil ao qual se chegasse fosse outro, fosse o outro lado desse Brasil de que se haveria partido. Certamente não se tratava de fugir do Brasil para ir passear na Europa. Era fugir do Brasil, mas para voltar a um Brasil mais interessante, que não fosse o "Brasil" do poder - o Brasil da arrogante e ignorante ditadura de então, o Brasil do desprezo ao índio e ao povo, o Brasil secularmente dominado por uma classe de beneficiários de uma das mais iníquas situações de desigualdade socio-econômica da época moderna. Um país que me parecia incuravelmente escravocrata. [Eduardo Viveiros de Castro. Coleção Encontros. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 248]
O governo de Dilma Rousseff, neste caso, não se encaminha para a cura.

P.S.: O sobrenome de Olavo Hanssen foi retificado segundo nesta nota: http://opalcoeomundo.blogspot.com.br/2013/05/ato-em-memoria-de-olavo-hanssen-e.html 

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