O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

domingo, 19 de março de 2017

30 dias de canções: Mahler, o marginal

30 dias de canções

Dia 26: Uma canção que cancela as paixões

"Ich bin der Welt abhanden gekommen" ("Tornei-me estranho ao mundo"), de Gustava Mahler, sobre poema de Friedrich Rückert, composta durante 1901 e 1902. Ele musicou mais quatro desse poeta nessa época.
Esta canção só poderia ser feita por Mahler. Mas não o resume musicalmente: ele tem diversos momentos em que o mundo invade a música, que contrastam com esses de lirismo.
Esta música soa melhor em vozes médias ou graves. Para ouvi-la em voz feminina, sugiro Jessye Norman, com a Filarmônica de Nova Iorque regida por Zubin Mehta: https://www.youtube.com/watch?v=bxh-VTqNK0c.
Entre os homens, aconselho José van Dam, aqui na gravação de estúdio com a Orquestra Nacional de Lille regida por Jean-Claude Casadesus: https://www.youtube.com/watch?v=kuQBg-tS0o8
O original é metrificado e rimado, na minha tradução fuleira ficaria assim:
Tornei-me estranho ao mundo, nele já perdi muito tempo. Faz tanto que ele não ouve nada de mim que deve bem acreditar que estou morto! Não dou a mínima se me julgam morto. A isso não posso retrucar nada, pois realmente morri para o mundo. Morri para o tumulto do mundo e descanso em um território silencioso. Eu vivo sozinho em meu paraíso, em meu amor, em minha canção.
Na canção, repete-se uma vez "em meu amor" (in meinem Lieben): https://youtu.be/bxh-VTqNK0c?t=5m42s, na frase mais aguda do fim; na última, "Na minha canção" (in meinem Lied), ouve-se um recolhimento ao repouso. A ornamentação em gerstoben (morto) na frase "deve bem acreditar que estou morto", também é muito interessante: Dietrich Fischer-Dieskau, mesmo aqui, em fim de carreira, ao lado de Chailly, acha a expressão mais correta: o barítono mantém a voz leve e sua face está serena, não se trata de nenhuma tragédia: https://youtu.be/587P3LMhkJg?t=2m9s
Afinal, ele realmente se isolou e achou, fora do mundo, aquilo de que necessita: paraíso, amor, canção: Himmel, Liebe, LiedNão tenho ideia de como reproduzir as assonâncias desses três substantivos, que Mahler tão bem explora, em português.
Se a música é tão pessoal, talvez seja porque Mahler tenha visto na letra algo que lhe era muito próximo. Tinha que ser algo estranho no mundo, pois era um judeu no Império Austro-Húngaro; em razão da discriminação, teve de batizar-se no catolicismo para reger a Ópera de Viena. Klemperer, em 1948, falou à Rádio de Budapeste sobre o compositor, cujo valor ainda era subestimado naquela época, antes de reger A canção da terra: "Por toda sua vida, eu foi atacado tanto por antissemitas quanto por filossemitas. Ele era, propriamente falando, um marginal". Ele não era religioso, mas tinha um sentido de piedade que não se adequava a nenhuma igreja.
Além disso, ele era um compositor que não era entendido na época, nem mesmo por Klemperer ou Bruno Walter, os dois maestros mais jovens que o conheceram e foram fiéis à música de Mahler, que morreu prematuramente em 1911. Nenhum dos dois chegou a reger todas as sinfonias. Leonard Bernstein, nos anos 1960, seria o primeiro a fazê-lo. O filme de Visconti, Morte em Veneza, com o onipresente adagietto da Quinta Sinfonia, ajudou na divulgação da obra de Mahler que, hoje, é das mais populares, e eclipsou, em número de gravações e apresentações, quase todos seus contemporâneos. E pensar que, ainda nos anos 1980, comprei um livrinho sobre Mahler dos Guias Musicais da BBC com um tom geral negativo sobre a obra, chegando a comparar sua música com a de Mascagni...
O adagietto da Quinta compartilha do clima melancólico da canção "Ich bin der Welt abhanden gekommen", que é uma das facetas mais atraentes da música de Mahler. Outra delas é a forma como integrou a canção à sinfonia, como fez na Segunda, na Terceira e na Quarta. A Primeira, a Quinta, a Sexta e a Sétima são apenas instrumentais; a Oitava, porém, é completamente cantada, com uma série de solistas e coros, inclusive um infantil. A Nona, que ele nunca chegou a ouvir, é puramente instrumental, e provavelmente também o seria a Décima, que ele não completou.
Klemperer, naquela mesma fala, comenta como Mahler tocou piano em um recital só de canções suas em Berlim e a sala estava bem vazia. Era 1907. Poucos anos lhe restavam, e ele deixaria nesse ano Viena para Nova Iorque, onde a doença cardíaca, que o matou, e a concorrência com Toscanini não lhe permitiram fazer tanto sucesso como maestro.
Alex Ross, em um livro creio que chamado O resto é surdez, tenta minimizar o antissemitismo de Viena (ele não menciona, mas quando Bruno Walter tornou-se assistente de Mahler em 1901, foi atacado em termos discriminatórios pela imprensa austríaca) e afirma que Mahler foi para os Estados Unidos realmente para ganhar muito dinheiro.
Nos anos 1930, a Áustria logo pareceria perigosa demais para todos os judeus, e a Alemanha já o era quando a anexou. Bruno Walter deixou a Áustria depois de ainda reger lá a Nona de Mahler, que pode ser ouvida como uma sinfonia de despedida, em 1938, ano da anexação.
Paul Griffths, no interessante e acessível Modern Music: A concise history, apresenta uma explicação interessante para o sucesso póstumo de Mahler:

[...] parte da música aparentemente mais reacionária da metade do século [XX] pode realmente ser, em um nível diferente, a que mais olha para o futuro - música na qual, como no altamente sofisticado mundo de Berio, a própria linguagem composicional se sujeita à vontade do artista para que ele a manipule e a use contra ela mesma. Mahler, cujas sinfonias operam exatamente nesse mundo de falsas aparências, começou nos anos 60 e 70 a ser visto como uma figura central da música do século.
Algo da consciência que ele tinha da linguagem musical e sua relação com a história estaria finalmente presente na música daquelas décadas. Finalmente, o mundo tinha aportado, depois das tempestades das guerras mundiais e dos genocídios, após ondas e correntes estéticas, às margens de Mahler.

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