O palco e o mundo


Eu, Pádua Fernandes, dei o título de meu primeiro livro a este blogue porque bem representa os temas sobre que pretendo escrever: assuntos da ordem do palco e da ordem do mundo, bem como aqueles que abrem as fronteiras e instauram a desordem entre os dois campos.
Como escreveu Murilo Mendes, de um lado temos "as ruas gritando de luzes e movimentos" e, de outro, "as colunas da ordem e da desordem"; próximas, sempre.

quarta-feira, 22 de março de 2017

30 dias de canções: Ilse Weber e o silêncio do mundo

30 dias de canções

Dia 29: Uma canção improvavelmente composta

"Wiegala", de Ilse Weber. Aqui, na voz de Anne Sofie von Otter, que a gravou no disco "Terezín": https://www.youtube.com/watch?v=cAN5qjcAn8w.
Ilse Weber era uma judia tcheca germanófona, como Kafka. O escritor morreu em 1924, não viu as políticas de invasão, conquista e extermínio que a Alemanha implantaria, que acabaram afetando sua família.
Weber foi assassinada em 1944 no campo de Auschwitz.
O campo de concentração de Terezín, a 60 km de Praga, serviu de propaganda para os nazistas: parte da elite cultural judaica foi levada à força para lá e o campo foi chamado de "assentamento judeu". Representantes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha foram levados para verificar suas condições e não perceberam nada de errado.
No entanto, os prisioneiros viviam sob ameaça de deportação para campos de extermínio, o que ocorreu a quase todos, e tinham que realizar exaustivos trabalhos forçados.
Nem todos artistas foram para lá: Schulhoff, por exemplo, foi morto no campo de Wülzburg. 
Não era provável conseguir criar arte em um campo de concentração, no entanto em alguns lugares isso era possível. O pianista italiano Francesco Lotoro já conseguiu gravar parte dessa música. 
Em Terezín, Viktor Ullmann criou a ópera que parodiava o próprio ditador alemão, O Imperador de Atlantis, que é uma obra-prima que lhe custou a vida.
Ilse Weber escreveu poemas no campo de concentração e musicou alguns deles, usando o violão.
"Wiegala" é uma canção de ninar. Quando as crianças de Terezín foram transferidas para Auschwitz, para serem mortas em massa, Weber quis ir com elas, e cantaram a canção na câmara de gás.
A doce letra apresenta três estrofes: na primeira, o vento brinca com a lira e toca suavemente, e o rouxinol canta. Na segunda, a lua é uma lanterna e olha para o mundo. No fim, comenta-se o silêncio do mundo: "Nenhum som perturba a adorável paz./ Durma, minha criança, durma também."; "Como o mundo está silencioso".
No fim, seria o silêncio dos mortos. Por isso, quase escolhi esta música para o trigésimo dia do desafio, a canção que lembra o mundo. Seria, porém, injusto com Ilse Weber e sua coragem.


Dia 2: Números do trabalho, não da riqueza
Dia 3: O céu, o mar, a umbanda
Dia 4: Milton Nascimento e Fernando Brant desarquivando o Beco
Dia 5: Eisler e Brecht, ou é perigoso, se tocado alto
Dias 6 e 12: Paticumbum na infância do ritmo
Dia 7: A Suíte de Caymmi e uma nota sobre o regente Martinho Lutero e o desmanche da cultura
Dia 8: Nyro, as drogas e o transporte
Dia 9: Tom Zé, a felicidade e o inarticulável
Dia 10: Manuel Falla e a dor da natureza
Dia 11: De "People" ao povo e Cauby Peixoto
Dia 13: Baudelaire, Duparc e volúpia
Dia 14: Bornelh, o amor e a alba
Dia 15: Rodgers e Hart e o desejo de arte
Dia 16: Piazzolla, Trejo e o irrecuperável
Dia 17: Janequin, ir à cidade que grita
Dia 18: Amin, Garfunkel e outros pássaros
Dia 19: Wolf e Mörike imaginando a ilha
Dia 20: A loucura, Schumann e Andersen
Dia 21: Tiganá Santana e a memória negra
Dia 22: A boca seca da revolução: Miguel Poveda e Narcís Comadira
Dia 23: Encontrar o dia novo, Villa-Lobos e Ferreira Gullar
Dia 24: Bosco e Blanc vs. racismo e censura
Dia 25: Sarah Vaughan e os palhaços
Dia 26: Mahler, o marginal

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